domingo, junho 21, 2009

Textos Sobre a Existência de Deus e Ética

Os dois textos que se seguem foram escritos há 3 ou 4 anos, numa altura em que me interessei por estes assuntos e, quando achei que estava em vias de me esquecer das ideias que fui compilando, entendi passá-las a escrito, tal como as tinha organizado mentalmente. No período que se seguiu não fiz qualquer desenvolvimento sobre os temas e só quase por acaso os revisitei recentemente. São textos sem qualquer ambição nem particular preocupação de rigor em termos de forma ou conteúdo.


Reflexões sobre a Existência de Deus

"There are more things in heaven and earth, Horatio, than are dreamt of in your philosophy"

- Hamlet, acto 1, cena V, William Shakespeare

1. Tomemos como ponto de partida, o facto de o Homem ser mentalmente livre, ou seja, dotado de livre arbítrio.

Este facto, aparentemente simples, poderá explicar a razão pela qual Deus não se mostra através de expressões evidentes, dando lugar ao conceito de fé.

Se Deus se mostrasse visivelmente, não seríamos verdadeiramente livres, mas apenas bem ou mal comportados, mais ou menos disciplinados.

Sem a certeza da existência de Deus, existe lugar para a consciência, para opção entre o Bem e o Mal. Se a existência de Deus fosse evidente, não teríamos esta liberdade.

Grande parte dos que que não têm fé, baseiam-se no facto de não acreditarem no que não vêem. Se vissem porém, não eram livres.

Esta argumentação não prova a existência de Deus mas elimina racionalmente um dos motivos principais pelo qual muitas pessoas não acreditam na existência de Deus.

Poderá então deduzir-se que a existência de Deus não é demonstrável pela razão humana, caso contrário estaríamos perante uma contradição com o ponto anterior pois Deus não se mostrava, mas permitia que fosse provada a sua existência, caíndo novamente na situação de ausência de livre arbítrio.

Sem a referida liberdade, o Homem teria uma dignidade mais reduzida, cujo mérito se restringiria à capacidade de cumprir melhor ou pior, os preceitos decorrentes de uma determinada noção de Bem e de Mal.

Essa noção não seria necessariamente idêntica em todos os seres humanos nem sequer coincidente com a actual. Ainda assim é altamente provável que, qualquer que fosse o grupo social considerado, existisse uma moral vigente, por duas razões elementares que poderão não ser dissociáveis: por surgir de modo instintivo e/ou por constituir condição indispensável para o funcionamento e sobrevivência desse grupo social. Dado que estamos a supor a ocorrência de manifestações evidentes da existência de Deus, a noção de Bem e de Mal seria também provavelmente influenciada pela forma que essas manifestações tomassem.

Nesse contexto, e independentemente dos parâmetros que regessem o comportamento considerado correcto, seria evidente que Deus, o Criador por definição, “desejaria” que esse conjunto de regras fossem cumpridas da melhor maneira possível pois tal asseguraria uma maior prosperidade da sua Criação e portanto seria também evidente, ou pelo menos altamente receado, que viesse a ser feita justiça, após a vida, quanto ao maior ou menor cumprimento dessa moral vigente.

Podemos então interrogar-nos se a possibilidade do Mal, não será apenas uma consequência indispensável para o livre arbítrio que foi concedido aos homens e, como foi dito, para a sua dignidade.

2. Consideremos as seguintes questões : O Universo é finito ou infinito? E o tempo?

Não conseguimos imaginar nem uma coisa nem outra. Não conseguimos sequer perceber integralmente o conceito de infinito ou a sua aplicação a qualquer situação real. Também a idealização de um Universo finito gera paradoxos que não nos é possível resolver.

No entanto, estas questões têm sentido e as respectivas respostas teriam impacto em múltiplas áreas do conhecimento. As consequências da incapacidade do Homem em apreender o conceito de infinito poderão ser largamente estendidas, ao ponto de levantar a hipótese de este constituir a pedra angular das grandes interrogações e paradoxos com que a Humanidade se depara.

Se a nossa percepção de espaço e tempo está posta em causa através desses aparentes paradoxos, como podemos achar que a racionalidade explica tudo e deve reger, de modo exclusivo, a nossa cosmovisão?

Cientes deste facto, deveríamos abrir a possibilidade de integrar nos nossos raciocínios lógicos, conceitos não demonstráveis e habitualmente tidos por não objectivos, tais como a Fé, a Verdade, a Bondade ou porque não, a Beleza ou o Amor.

Numa era em que o uso da razão constitui um verdadeiro dogma, é conveniente demonstrar que a sua utilização exclusiva se traduz numa visão limitada sobre a realidade ainda que este excesso de objectividade constitua historicamente uma reacção a atitudes, que a antecederam, em que a sua falta conduzia a perspectivas não menos limitadas.

3. Os número imaginários poderão também ajudar a compreender o conceito de fé.

Resumidamente, um número imaginário (i) foi definido matematicamente como sendo aquele cujo produto por si próprio dá o resultado de -1 ou, o mesmo é dizer, a raiz quadrada de -1. Claro que este número não existe porque tanto -1 x -1 como 1 x 1 dão o resultado de 1. Podemos, no entanto, definir que esse número (i) existe, e nesse caso teríamos por consequência que i x i = -1, i + i = 2i, i x –i = 1 ou ainda que e*xi = cos(x) + sin(x)i (equação de Euler, em que * significa ‘elevado a’), de demonstração mais complexa.

Estas noções constituem um pilar da Matemática. Não é possivel conceber o mundo científico de hoje sem a descoberta dos números imaginários e a sua aplicação prática é enorme, não substituível por um qualquer outro conceito.

E tudo isto a partir de algo que não existe, segundo a nossa comprensão das operações mais básicas com número inteiros.

A analogia com o conceito de fé, é directa. Se partirmos do princípio que Deus existe, ainda que contrária à nossa tendência para não acreditar no que não nos é dado ver, poderemos chegar a um tipo de conhecimento não alcançável de outro modo. Segundo o ponto de vista não crente, estamos a partir de um princípio errado e portanto as conclusões que daí tirarmos estarão postas em causa. No entanto, já se viu que com os números imaginários se passa o mesmo, o que segundo esse mesmo princípio racional nos dá a legitimidade para o fazer.

E é de facto extraordinário onde se pode chegar, reflectindo a partir desse princípio que Deus existe. É possível tirar conclusões que poderão naturalmente parecer estranhas a quem nunca ‘entrou’ por esse caminho. S. Anselmo dizia que "acreditava para poder saber".

À semelhança das reflexões anteriores, este raciocínio não prova a existência de Deus mas contesta um dos argumentos contra a sua inexistência.

4. A existência de Deus, quando tentada provar pelo lado afirmativo baseia-se essencialmente na Criação. Quem criou o que existe?

Não as plantas ou os animais (estes são certamente uma consequência) mas sim, o Universo. Tudo começou ao que parece, com uma enorme explosão há 15 mil milhões de anos mas, o que existia antes? Ou então, ‘quem’ a produziu? Ainda que essa explosão tenha resultado de um sistema cíclico de implosões e explosões de Universos, ‘quem’ iniciou este ciclo?

‘Sentimos’ instintiva, e também objectivamente, a necessidade de existência de um Criador, sensação esta que é totalmente legítima, na medida em que já vimos que a racionalidade pura será sempre insuficiente neste âmbito.

É essa necessidade que poderá estar na origem da tendência natural e comum entre povos com diferentes origens, raças e culturas, para acreditarem na existência de uma entidade sobrenatural.

5. É notável que a dúvida sobre a existência ou não de Deus permaneça ao fim de tanto tempo, de séculos de reflexão. Existem diversas manifestações externas, como aparições e milagres, mas que se mantêm na fronteira extremamente estreita de não provarem inequivocamente a existência de Deus, apenas reforçarem a convicção dos que acreditam, sem no entanto, forçarem os não crentes a fazê-lo. Também a evolução científica produz sucessivamente novas descobertas que até agora nunca colocaram realmente em causa o lugar da fé.

Não sendo uma prova da existência de Deus, estes factos podem constituir um ponto de partida para a reflexão.

6. Surge ainda a grande questão do “porquê” ter Deus criado o Universo, que por sua vez (com ou sem intervenção divina) gerou homens capazes de decidir sobre o Bem e o Mal, auto-conscientes, limitados fisica e mentalmente, e que se questionam sobre a Sua existência. Esta questão, por não ter uma resposta óbvia, e no entanto parecer pertinente, afasta algumas pessoas da fé, face à ausência de um sentido e de um fim para a Criação.

De um ponto de vista racional, seria certamente mais fácil chegar à ideia de fé se fosse possível compreender o objectivo da Criação. Mas este conceito humano de uma determinada acção ter um fim, não é, neste caso, aplicável. Um ser todo-poderoso, com a capacidade de criar um Universo, não tem que ter objectivos pois quaisquer que eles sejam, deverá poder alcançá-los. O porquê de Deus ter criado o Universo constitui uma questão que não tem que ter uma resposta e não deverá portanto constituir um argumento de não-fé.



Reflexões sobre Ética


É costume, de acordo com a nossa tradição cultural, aceitar como válidos, os raciocínios e argumentações que cumpram as regras formais da lógica. Mesmo em temas que partem de princípios subjectivos ou não demonstráveis, como por exemplo a teologia, o cumprimento dessas leis constitui um pilar da sua estrutura e desenvolvimento.

Podemos incluir as análises custo-benefício, numa perspectiva alargada da argumentação lógica e cuja definição simplista seria a de que face a duas soluções para um determinado problema, aquela que apresentar objectivamente um saldo mais favorável entre vantagens e desvantagens, será uma solução considerada melhor e portanto preferível.

À partida, esta regra não deveria ter excepções. Se, de facto, uma solução apresenta um conjunto de vantagens/desvantagens melhor que outra, em que circunstâncias fará sentido optar por outra ou outras?

Um exemplo muito explícito, ainda que mórbido, é o seguinte: consideremos o problema da existência de uma eventual doença infecciosa, afectando a espécie humana, mortífera e transmissível através do contacto, à semelhança de vários casos reais, passados e actuais. Suponhamos ainda que, num determinado momento, a nível mundial, existe um certo número de pessoas infectadas, número esse que todos os especialistas na matéria seriam unâmimes em que iria, a prazo, crescer significativamente.

Numa fria análise custo-benefício seria defensável e até preferível, a solução de simplesmente ‘eliminar’ todos os elementos infectados num determinado momento, uma vez que estes seriam certamente os agentes da transmissão da doença aos futuros afectados, realizando-se deste modo uma grande ‘poupança’ de vidas.

Este exemplo, bastante desagradável, mas elucidativo, evidencia uma situação que embora evidentemente inaceitável, poderá ser de difícil contestação, fora do plano ético.

Talvez possamos arriscar uma definição de Ética como sendo a área do saber que se debruça sobre todas aquelas situações em que as análises do tipo custo-benefício não se podem e/ou devem aplicar.

Uma forma de validar esta abordagem do conceito de Ética consiste naturalmente em verificar a sua aplicabilidade às questões que actualmente se considera estarem incluídas no seu âmbito. Uma passagem superficial por várias dessas questões poderia, desde logo, induzir uma conclusão favorável no entanto, antes de entrar na análise de alguns casos práticos, valerá a pena estabelecer uma das principais consequências a retirar desta abordagem, caso se verifique a sua validade.

Para além das vantagens inerentes a uma formalização do conceito de Ética, a principal ilacção a retirar desta abordagem, é a de poder estabelecer que se uma determinada questão se insere, ainda que intuitivamente, no campo da Ética, então, argumentações do tipo custo-benefício realizadas no âmbito da sua análise, devem ser encaradas com reservas. Isto significa, em termos práticos, que os pontos de vista enunciados durante a discussão dos temas éticos deverão ser condicionados por uma restrição à aplicabilidade do referido conceito de custo-benefício, tão intrinsecamente constituintes de uma argumentação lógica tradicional.

Alguns casos práticos :

- quando relativamente ao tema da pena de morte se argumenta que a execução de um condenado induz, em termos estatísticos, uma redução de futuros crimes, será este argumento válido?

- quando relativamente ao aborto se refere que a sua liberalização permite uma redução do número de acidentes resultantes de abortos clandestinos e portanto uma melhoria do saldo global de vantagens e desvantagens, será este argumento válido?

- quando num caso de separação de gémeos ‘colados’ se procede à sua separação, com a consequente morte de um deles, com a argumentação de que caso não fossem separados, morreriam os dois, será este argumento válido?

Poderíamos ir ainda mais longe se afirmássemos que o tema da Vida, de um modo genérico, é uma questão ética e portanto no âmbito da não aplicação do conceito custo-benefício.

E se no conceito de vida incluírmos a vida não inteligente, e a Natureza de uma forma global, então muitas outras questões se levantam, que a título de exemplo, se poderão indicar as seguintes:

- as medidas de erradicação da BSE ou da febre aftosa, que passam pela exterminação maciça de animais, estarão correctas, ainda que perfeitamente defensáveis numa perspectiva de análise custo-benefício?

- será correcto justificar permanentemente as decisões de conservação da natureza através da necessidade de desenvolvimento sustentado e benefício da humanidade a longo prazo, numa clara atitude de custo-benefício, ou será que a própria natureza possui uma dimensão ética, com uma valor e ‘dignidade’ que dispensam esse tipo de justificações, claramente insuficientes?

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